Conversa com exclusividade com Jean Carlos Ocampo, pai de Sophia de Jesus Ocampo, e seu marido, Igor de Andrade, pai de coração da menina de apenas 2 anos morta no dia 26 de janeiro, após ser agredida pela mãe, Stephanie de Jesus da Silva, e seu namorado, Christian Campoçano Leitheim.
Após omissões em série cometidas contra Jean e seu marido Igor, que tentaram de todas as formas conseguir a guarda de Sophia, o Correio do Estado cede um espaço importante para que a história da menina seja relatada e para que tragédias como a dela não continuem se repetindo em Mato Grosso do Sul.
A Polícia Civil e o Ministério Público de Mato Grosso do Sul (MPMS) levaram 10 meses para investigar o caso depois da primeira denúncia, feita em 31 de dezembro de 2021. Como vocês avaliam essa omissão sistêmica?
Igor de Andrade – Eu acho uma negligência pura, e enxergamos que, além da omissão, tem a questão do descaso.
Acredito que o fato de sermos dois pais, dois homens gays indo atrás dos direitos para a proteção da Sophia, contribuiu para que nada fosse feito. Fomos atrás mais de uma vez, a gente pediu socorro de todas as formas que a gente sabia.
A homofobia foi um fator determinante, não de forma direta, mas de um jeito velado, em que as pessoas dos órgãos aos quais nós recorremos agiam da forma “como vamos tirar essa criança da mãe para dar para dois homens?”.
Porque, no nosso entendimento, não tinha razão para desacreditarem das agressões que nós estávamos relatando, tínhamos fotos, vídeos e áudios que demonstravam os maus-tratos a Sophia. Não tem lógica.
Como vocês avaliam a conduta dos profissionais de saúde que atenderam Sophia, da Justiça e do Conselho Tutelar? Para vocês, houve falta de empenho para identificar que ela estava em situação de risco?
Jean Carlos Ocampo – Houve falta de interesse, e o principal problema que vejo foi a falta de comunicação entre os órgãos públicos, porque, se o pessoal do posto de saúde entrasse em contato com o Conselho Tutelar, eles teriam visto que já havia uma denúncia de maus-tratos. Não teve esse contato entre eles.
Igor – É até irônico, porque, quando a prefeita Adriane Lopes foi a público, ela falou que Campo Grande é a capital que mais identifica os casos de violência contra a criança por ter as equipes mais preparadas para situações como essas.
Só que, quando receberam a nossa filha [na unidade de saúde], tomaram o que a genitora falou como verdade absoluta. Não agiram como profissionais para olharem mais de perto o que a Sophia estava passando.
É isso que não entendemos, porque, para a sociedade, só de a criança estar junto com a mãe, significa que ela está bem e protegida. E não é assim. Tivemos a prova disso com a nossa filha, quando a pessoa que deveria zelar por ela e protegê-la foi responsável por toda essa dor.
O que mais nos revolta é todas as instituições virem a público para afirmar que eles fizeram de tudo para ajudar no caso, que as equipes estavam totalmente preparadas. Se isso realmente aconteceu, por que a nossa filha morreu?
É revoltante, e durante a audiência pública foram contadas uma mentira atrás da outra. Nem eles se convencem das mentiras que estão contando.
Como foi o tratamento que vocês receberam nas tentativas para conseguir a guarda da Sophia?
Igor – Durante todas as tentativas que fizemos para tentar a guarda dela, em nenhuma vez quiseram me ouvir. Sempre questionavam quem era o pai e, quando respondíamos que os dois eram, perguntavam novamente quem era o pai biológico.
Falamos que era o Jean, e nesse momento me encaminharam para uma salinha separada, sem a chance de que eu relatasse tudo o que víamos que acontecia com a Sophia.
Isso aconteceu no Conselho Tutelar, quando fomos fazer o boletim de ocorrência na Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente [DEPCA], em que a Sophia inclusive estava presente conosco e pediram para eu aguardar em um canto.
O único momento em que a psicóloga falou comigo foi para perguntar se a Sophia me chamava de pai, porque ela relatou para a psicóloga que “o papai dela bateu e, depois, a mamãe”. À época, não tínhamos conhecimento de que o monstro [Christian Campoçano Leitheim] a obrigava a chamá-lo de pai.
Jean – Inclusive, nesse momento em que ela disse que a Sophia relatou que quem havia machucado a sua perna tinha sido o “papai”, eu tomei um susto e, na hora, pensei que o que nós estávamos relatando viraria contra mim.
Nesse momento a psicóloga perguntou para ela de novo quem a havia machucado e, quando ela repetiu “papai”, a profissional me informou que não tinha como validar o depoimento dela por conta da idade. Ou seja, a falta de preparo dessa profissional também foi um descaso com a Sophia.
Igor – Se você é um psicólogo, se você é um especialista em criança, você sabe que a criança se comunica de formas muito além do que a fala, elas falam com o gesto, com as atitudes.
Nossa filha tinha todos os indícios de maus-tratos, a perna estava fraturada, ela tinha hematomas pelo corpo, e concluíram que ela tinha caído no banheiro, que foi a história absurda que a genitora dela contou no hospital e para todo mundo.
Fizeram um juízo de valor conosco e inviabilizaram todas as tentativas para tirar ela desse local de violência.
Só fizeram um documento para o Jean assinar e pediram para aguardarmos em casa. Em nenhum momento solicitaram o exame de corpo de delito.
Hoje eu tenho ciência de que o escrivão tem o poder para, na hora do registro do boletim de ocorrência, solicitar o exame de corpo de delito e, além de não terem feito isso, em momento nenhum nos instruíram que havia essa possibilidade. Com tudo o que aconteceu, o Estado continua não enxergando a Sophia.
Hoje sabemos que o padrasto dela tinha histórico de agressão contra a mulher, tinha histórico de violência, e nada aconteceu.
Inclusive, só ouviram o filho dele [Christian] depois que mataram a Sophia e, quando questionaram essa criança se ele lembrava da Sophia com o gesso na perna, ele afirmou que “o pai dele que chutou a perninha dela duas vezes na rua”.
Nisso vimos que ele manipulava totalmente as crianças e as torturava psicologicamente, além de agredi-las.
A negligência com a Sophia foi antes, durante e depois de sua morte. Quando buscamos o Conselho Tutelar, o recepcionista que estava lá foi extremamente grosso, mal-educado a ponto de perguntar o que que a gente queria.
Ele simplesmente bateu a porta na nossa cara e se recusou a nos atender.
Quando começamos a mostrar nas redes sociais mais um descaso que estava acontecendo, ele disse que o nosso problema era querer caçar pelo em ovo, e isso, só para deixar claro, aconteceu depois que Sophia foi morta.
Na nossa visão, enquanto eles agem assim, várias crianças como a Sophia estão morrendo.
Isso é o mais revoltante: a nossa filha já morreu, o que mais precisa acontecer para que eles [Conselho Tutelar] mudem a forma de trabalho?
O caso da menina conhecida como Estrelinha também foi denunciado no Conselho Tutelar Norte, e já vimos que o interesse da criança não está sendo atendido.
A meu ver, os conselhos tutelares deveriam ser compostos por uma equipe multidisciplinar, composta por psicólogos, assistentes sociais e enfermeiros, e o que temos hoje é um verdadeiro cabide de empregos de pessoas que são colocadas ali por parentes, políticos e eleição para os cargos de gente que só se interessa pelo salário.
Muito se tem discutido nos últimos dias sobre as mudanças necessárias para a reestruturação do atendimento às crianças vítimas de maus-tratos e violência. Para vocês, o que deve ser feito de imediato para que a negligência da sociedade com a Sophia não se repita com outras crianças?
Jean – O principal ponto que nos fez perder nossa filha foi a burocracia. Se tivesse mais agilidade e menos burocracia, a gente teria conseguido a guarda da Sofia e ela estaria viva conosco. A nossa luta antes era para tirar a Sofia de lá.
A Sofia foi tirada de nós da forma mais cruel que existe nesse mundo. Agora a nossa luta é outra, é para que não aconteça com outras crianças o que aconteceu com a Sofia. Estamos correndo atrás e transformando o nosso luto em luta. Se eu falar para você que está sendo fácil, não está.
Cada dia nós temos que juntar os cacos, porque nosso coração está machucado e estamos tentando fazer por outras crianças o que não fizeram para a nossa filha, para que pais que estão na mesma situação que estávamos não passem pelo que estamos vivendo.
A voz que a Sophia sempre tentou pedir socorro e ninguém ouviu é o que nos motiva a continuar na luta por justiça.
Como você avalia o que foi proposto pelo poder público até agora para melhorar o sistema de atendimento às crianças vítimas de maus-tratos?
Igor – Qual é o intuito de criar uma Casa da Criança, que será só mais um lugar em que será gasto dinheiro público e nenhuma medida será feita?
Nós pegamos a Sophia no dia 31 de dezembro de 2021, quando notamos os primeiros hematomas, e o Conselho Tutelar estava fechado. A impressão que nos dá é que no fim de ano nenhum crime contra as crianças acontece na cidade.
Parece que é programado: as agressões às crianças só acontecem de segunda a sexta-feira, sábado e domingo, não.
Quando nos falaram sobre as intenções de criar essa Casa da Criança, será que terão pessoas realmente preparadas para lidar com esses casos? Ou será só mais um lugarzinho em que as denúncias não serão levadas a sério?
Fonte Correio do Estado!